terça-feira, 8 de outubro de 2024

Λουκᾶς, vel meus Lucanus

A brasa ardia lentamente na brisa fria de outubro enquanto as nuvens mascaradas de menta eram dispersas a cada expiração solitária sob as estrelas. Seus pensamentos aguardavam ao fundo enquanto seus sentidos eram entorpecido a cada tragada intercalada de pequenos goles da solução de malte fermentado estocada por semanas no refrigerador.

Preferia estar só para apreciar o silêncio que se fazia em sua mente naquele momento. Seu amado, repousava em sonhos expressos pelas sinalizações ocorridas de tempos em tempos de suas mãos ágeis. Ele o observava pela janela, à distância de um cômodo e, mesmo à meia luz, podia perceber a graciosidade de seu corpo seminu coberto pelo tênue tecido que cobria-lhe o peito.

Agradecia aos espíritos protetores que proporcionaram o encontro nesta vida de seu companheiro, mesmo ciente da reprovação destes pela escolha maculosa da intoxicação de seu corpo, instrumento de trabalho que se recuperava às custas da reserva de energia que já apresentava certo déficit por sua imoderação. 

A sensação de gratidão percorria as memórias da vida a dois, nos quase sete anos de convivência: dos risos em comum, das discordâncias mantidas, das soluções criativas e mesmo das angústias partilhadas. Ele observava entre a grade que protegia a janela da casa alugada às pressas, no advento do Natal passado, em vigília àquele que lhe devotou seus medos mais íntimos e lhe confiou a guarda de seu coração. Em contrapartida, se despiu de suas defesas para que seu amado pudesse vê-lo além de seu enrijecimento, com seus vazios e compulsões, para que o visse por inteiro. Este, por sua vez o acolheu e trazendo-lhe lúmen, selou uma aliança de cumplicidade com ele.

Mesmo após a brasa consumir-se em fumaça e suor frio ou o líquido esgotar-se do recipiente, ele demorava-se de pé, sob o firmamento estrelado, apoiando-se na grade, à janela, enlevado pela ternura da silhueta luminosa que repousava a um cômodo de distância e dentro de seu peito; para só então voltar para dentro de casa e preparar-se dormir.

domingo, 12 de julho de 2020

Num mundo limpo de relações estragadas


Tudo agora está diferente. Pensa ele no percurso solitário à orla da lagoa límpida, enquanto nota mudanças até em sua caminhada, retomada na imunização geral. Seu andar, antes cheio de paradas súbitas para desviar dos blogueiros de vida saudável, cadencia-se apenas ao murmuro das águas batendo no cascalho que cede a cada passo reflexivo.

As pessoas escassearam durante a peste dos anos 20 e, ironicamente, hoje mantêm a distância tão aconselhada, pedida, obrigada naquela época turbulenta. Essa expiação perpétua, que impossibilitou às crianças pós-covidianas a vivência da proximidade, fez com que elas chegassem ao inverso de um mundo sujo de relações leves.

Seria o oposto melhor? Ele só sabe que o custo foi demasiado alto para se aprender uma lição.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Em encontro desde a véspera

Ao Lucas Barros

Era um ritmo conhecido que fora há muito apreciado, mas não foram os sons que prenderam minha atenção, eles apenas embalaram minha vibração naquela noite. Minha atenção era hipnotizada pelo fluir de um corpo com movimentos leves e mãos comunicativas.

A princípio era apenas a fascinação do olhar; a vontade de tornar-me figura fez brotar o desejo do contato, então o convidei para dançar comigo — Não! — lacônico suficiente para arrefecer apenas o entusiasmo. A noite continuaria invariavelmente estando eu satisfeito ou não; então entrei no movimento dos amigos quando novo ritmo invadiu a pista.

A temperatura subiu com os movimentos sensuais do festim que se esparramava agora por todo ambiente, quando, no interlúdio para uma bebida, um toque tépido em meu ombro esquerdo me fez virar para ouvir um pedido de desculpas e breves justificativas pela descortesia daqueles olhos vivazes e face ruborizando-se. Desculpas aceitas. Uma apresentação formal. Meu toque quente em seu ombro, enquanto um sorriso brotava em seus lábios. Então ele se foi.

O festim continuava e a curiosidade dos amigos foi satisfeita para retomarmos aos movimentos interrompidos. Ao final estava sedento, outra pausa para bebida, então a proposta da amiga — Achei o boy, você quer ir lá? — Vamos!

— Artur?!

— Não. Lucas.

— Nomes sempre são problemáticos pra mim.

— Pra mim também. Qual seu nome mesmo?

— Joaquim.

Sorrisos simultâneos, movimentos afinados, olhares penetrantes formaram o prelúdio daquele contato, até que os corpos figuraram um para o outro. Naquele terceiro momento de contato ele me tocou pelo contraste entre o adocicado de sua boca e o gosto salgado de sua pele molhada que exalava um aroma de desejo meio ruborizado.

Iniciamos então nosso encontro com um convite para conversarmos; quando pude começar a descobrir suas interessâncias, elencar outras afinidades, gargalhar em conjunto e formatar a resolução de permanecer em encontro.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Tia Maria Luísa


Reviver um luto tão no início do ano me faz invariavelmente tocar na ferida, agora fechada, da perda da Mãe Helena.

A respiração forçando, inutilmente, o coração desacelerar um pouquinho, oprime de dentro para fora. Assim como as conversas alheias à perda, às perdas… Conversas cotidianas e a folia das crianças com seus gritos e corridas divertidas irritam-me e me oprimem mais. Mas elas não têm culpa, estão vivendo, apenas isso.

Quando eu era criança gostava de vir à casa da tia “Mariluísa”. Vínhamos de bicicleta papai guiando, eu no varão e mamãe na garupa; ao entardecer dos sábados saíamos para falarem dos episódios da família do papai. Eu ouvia a todos. Ouvia mais que brincava. Ouvir os adultos era o que mais fazia quando íamos visitar o “Tizé-Moreira” e a tia “Mariluísa”.

Aqui no Batalhão era onde a gente comia arroz-de-leite. Tia Maria Luísa sempre o preparava em minha infância. E trazia à roda de risos e estórias cearenses vindas de Crateús na linhas férreas. Era também o lugar onde se louvava a Deus com bíblias que qualquer um poderia ler e eu ouvia aleluias após a leitura de alguns trechos da palavra de Deus.

Era uma família de crentes, mas sempre me cobravam a bênção dos tios, como se católicos fossem. Mesmo a tia Maria Luísa, irmã evangelizadora da Escola Dominical me pedia a bênção. Mas não deixavam de comer carne vermelha na Semana Santa. E eu temia que eles fossem castigados.

Nas férias da escolinha eu tocava nossa vaca nas manhãs, cedinho, para que ela fosse pastar nos terrenos depois dos trilhos e às vezes parava na casa dela só pra pedir a bênção de minha tia crente. Achava que era  um deus-te-abençoe diferente, e vinda de um deus que não tinha velas, santos ou almas em volta dele.

Hoje ela adormeceu em Cristo, espero revê-la quando eu me for também. Não no Dia do Juízo. Gostaria que fosse antes para dar tempo de pegar em sua mão e dizer: bença tia Mariluísa!

domingo, 3 de julho de 2016

Empatia


Ao Augusto Havynner

A claridade era tanta que ofuscava sua visão mesmo com os olhos fechados. Pálpebras rosadas e um calor seco eram suas únicas percepções naquele horário, e sua imaginação evaporava apenas pensamentos abrasados. Eram dessa maneira os meios-dias dele.

Quando ele chegava da escola com a cabeça quente das caçoadas dos colegas, e os olhos escaldados pelas lágrimas não derramadas, devido o orgulho ferido, adentrava a casa, à meia-corrida, para tirar o uniforme sufocante e sentir-se livre de mais outra manhã afogueada naquele colégio. A roupa ia para o cesto e os pensamentos para o chuveiro da área externa da casa.

Saia nu, meio saltitante, para fazer o xixi que segurava toda manhã por medo de ir ao banheiro e os meninos mais velhos estarem lá, mais uma vez. Ver sua urina amarela escorrer sobre o cimento quente lhe aliviava um pouco a pressão a qual vivia. E ele abria logo o chuveiro para cair a água quente e lavar aquela falta de educação. Quando a água já saia fria, entrava sob o jato do chuveirão e ficava lá, de olhos fechados, sentindo o contraste do vento quente e a água fresca.

Era com os olhos fechados e o rosto erguido que fitava a claridade, deixando escapar o calor de seu corpo e as dores de sua alma. Ao baixar a cabeça, abria os olhos e enxergava o vapor serpenteando após as gotas caírem ao longe, no cimento quente. Então algo doeu dentro de si, por estar tão quente e o chão não ter como se esfriar. Colocou as mãos em concha para aparar água e começou a aspergir ao longo do pátio ensolarado.

Jogava água com a mesma urgência que fugia dos meninos mais velhos da escola e dizia baixinho: “calma, eu vou te proteger; tudo vai ficar bem!”. E o chão ia, bem aos poucos, esfriando. À medida que as gotas caiam, logo evaporavam, mas ele não desanimava; continuou molhando mais e mais o cimento quente e só parou quando percebeu que ele, o cimento, estava emocionado, cheio de lágrimas que escorriam para os regos ao pé do muro.

Desligou o chuveiro, correu à cadeira onde ficava estendida sua toalha, secou-se brevemente e sorriu para o pátio que aos poucos secava aquelas lágrimas de gratidão.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Devastação

à Mãe Helena

Foi devastador saber que não mais veria sua rede armada ao lado da cama, nem seu vestido dobrado sobre a cômoda a cada noite quando eu fosse dormir.

Foi devastador perceber que você não estaria sentada à porta todo fim da tarde, esperando pela nossa conversa de como seria o futuro de logo mais.

Devastador lembrar que o som da máquina de costura iria preencher aquela casa, agora que não é mais necessário elevar o tom da voz ou aumentar o volume da tv para que ele escutasse.

Devastador por eu não mais sussurrar algo enquanto você, lia seu salmo diário ou fazia suas orações pedindo saúde para a família, emprego para os netos, força para aguentar as muitas dores de seu corpo cansado.

É devastador por eu saber que não a encontraria com suas revistas de caça-palavras a distrair sua mente das preocupações cotidianas.

É devastador por não ser mais preciso acompanhá-la em sua solidão, após a partida dele.

A devastação, por as visitas de suas irmãs àquela casa não mais ser algo leve e descontraído.

E esta devastação foi tamanha que, por alguns dias, eu temi não suportar viver naquela casa grande e que há pouco era tão cheia de vida...

Mas após a devastação há sempre um recomeço – isso é tão certo quanto suas previsões de chuva; certo quanto sua teimosia em não ficar parada – e nesse recomeço, percebo que a vida ainda está naquela casa, em cada lembrança que ela nos traz, a mim e a todos que com você conviveram.

A casa permanecerá aberta, como aberta era sua mente para as coisas do mundo; permanecerá de pé, da maneira que você lidava com as dificuldades; e acolhedora, como você foi a todos aqueles que lhe procuravam à espera de um conselho ou palavra amiga.


Sua ausência naquela casa é aterradora, a saudade asfixiante, mas a esperança de um reencontro e a gratidão por ter feito parte de minha vida me dão força para prosseguir.

domingo, 12 de julho de 2015

Sentinela

ao Pai Quincas

"Ouço seu ressonar no quarto de dormir, cheio de pausas e ruídos. Um sono cansativo; mais laborioso que a vigília, justamente por não ser sono realmente. Há cansaço em seu alento e debilidade em seu pulsar. Há, acima de tudo, teimosia em seu viver. Porque sua hora não chegou. Chegará em algum tempo? Certamente."


Eu escrevera este parágrafo em uma das últimas vigílias que fiz ao vovô (02.07.2015). Quatro dias depois sua hora chegava, em pleno dia; no meio do dia sua luta para se manter vivo expirou. Porém é à noite que sua falta se mostrar mais renitente.

À noite eu ouvia as preocupações dele me chamando: “este é o último ou ainda tem algum remédio pra tomar?”; “faça uma prece pelo seu avô”; “venha meu filho, venha trocar a fralda, ela tá suja”; “deixe a luz acesa”; “leve a fralda pra jogar no tambor de lixo”; “veja se elas já tão lá fora... já tá na hora do café... abra a porta”; “e meu remédio do jejum?”... Todos estes imperativos formavam uma canção cansativa, temerosa, mas acima de tudo, cheia de esperança.

...

Quando o vovô trocava de roupa, pedia-nos para enchermos seu bolso de algodão para ele limpar seus olhos, que fazia à noite deitado em sua rede entre conversas inaudíveis e gestos para os céus; enquanto eu, deitado na cama, observava calado os movimentos que ele fazia. Desconfio que ele secava seu medo de partir com aqueles chumacinhos tirados tão delicadamente do bolso esquerdo de seu pijama. Talvez este fosse o único medo que ele deixasse transparecer. Não apenas partir, mas partir sozinho, ficar sozinho talvez o assustasse mais que qualquer coisa. Já não havia irmãos vivos para conversar, seus amigos e compadres com os anos rareavam; ele recebia as notícias de seus falecimentos um a um com pesar e a voz embargada.

Nos últimos anos o vovô evitava sair de casa e nos queria na presença dele. A proximidade da família lhe trazia segurança, mesmo quando ele se sentava sozinho em frente à janela e via a vida passar rapidamente em sua calçada. Ele sempre me parava pra que eu pudesse pedir sua bênção e contar como estavam os estudos e/ou trabalho. Passar em frente daquela janela sem as perguntas do vovô faz sua ausência mais vívida. Escrever sobre isso faz sua ausência ecoar como sua voz à noite nos últimos meses, chamando-nos para saber as horas, recomendando providências para o lixo, perguntando-nos pelo café, por seus filhos e pela vovó.

...

Sete dias ainda é pouco tempo para se discernir tudo que se passa cá dentro desde sua partida. As emoções à flor da pele, a espera pelo seu descanso, os parentes e amigos velando nossos derradeiros cuidados, as correntes de orações e o som de sua respiração exausta ainda estão impregnados em meus sentidos. No entanto, isso tudo vai passar, fatalmente mudará com o transcorrer dos dias, dará lugar a lembranças menos pesarosas e poderei contar as histórias do Pai Quinca no mesmo tom que ele repetia as peripécias de sua mocidade, com entusiasmo, deferência e uma pitada de humor.


Resta-me agradecer a todos que se fizeram presentes na vida dele, em especial nestes últimos meses, e puderam acompanhar muito de seus dias e um pouco de suas noites, certamente ele esteve bem satisfeito pela atenção disponibilizada. Obrigado.