Eu ansiava pela revolução da Roda apesar dela já estar girando; minhas percepções estavam estagnadas no ponto em que eu permanecia. Foi preciso o ano recomeçar com o amanhecer de um dia qualquer para que eu percebesse que o movimento já se iniciara, melhor, que ele sempre existira, uniformemente variado.
Mas eu ansiava mesmo pelo ápice; mais uma vez pelo meu zênite. E lembro-me de ter escrito o desejo de jamais esquecer, humildemente ter em mente, meu nadir. Então me volto neste texto às minhas apreciações da época infausta, da época monótona do fim de 2009, quando aspirava às ausências e tinha algumas certezas.
Naquela época escrevi à Maria – minha amada Maria – e lhe dava conta do que se passava em minha vida. Gostaria de reproduzir fielmente, mas envolvo pessoas outras e eticamente seria impossível fazê-lo sem expor uma relação desgastada e retroalimentada de muitas más-interpretações. No fundo, não me importo muito em expor a relação – certamente outrem identificar-se-ão com ela – expor as pessoas seria indigno e certamente por elas interpretado à traição.
– Interpretado. Interpretado... – meus caros, por mais que queiramos, em vida real não interpretamos nada ou ninguém, somente somos. O verbo interpretar não se coaduna com o viver. Vive-se apenas sendo. Assim, sou Joaquim Neto, no ápice da Roda da Fortuna, relembrando-me e esperando o outro momento. Quero compartilhar-me através da carta à Maria. As personagens são secundárias e por isso as revesti de tons pastéis, palavras ocres e substantivos de Hesse. Sem mais delongas:
São 9:30 em um céu de 06:30 h
Altos, 2 de dezembro de 2009
Um homem limpa umas bananeiras, enquanto uma cabritinha salta sobre as pedras do quintal da vovó. Hoje está silêncio e o dia começou cedo; para mim, desde às 5:00 h sou pura consciência. Então resolvi escrever-te lamentando não estar em tua companhia e queixando-me por sentir tua falta. Queria o desapego búdico de deixar estar, abandonar até aquilo que me é caro. Ao menos queria ter tua força de vontade para “rester” abrigada das interferências externas em teus estudos. Não consigo. Simplesmente é monótono demais me perceber pensando em atitudes familiares: qual livro começarei a ler? qual área ainda não tenho conhecimento? quais relações preciso aprofundar?... enfim, não passam de pensamentos rotineiros. Acho que perdi o gosto de procurar o desconhecido. Creio que apenas o aguardo, mas ele não vem; e se vem, aparece-me disfarçado em roupas de ontem, com cheiros familiares e aparência bem cuidada...
A Roda da Fortuna girou lentamente durante a Primavera e minha vida, não, minha animação definhava enquanto o Centro de Altos desabrochava em róseas inflorescências; agora com as primeiras chuvas de verão sei que em mim tudo estará bom e belo. É mais uma certeza que esperança. É assim que acontece. É sempre assim que acontece. Assim como as bananeiras devem ser limpas antes das chuvas ou os cabritos exercitarem-se em solo acidentado. Logo mais estarei feliz; agora não. É um estado de não-felicidade e não-infelicidade que talvez os cabritos e as bananeiras conheçam, mas que é diferente do apenas-deixar-o-rio-correr almejado pelos taoístas, pois há desejo. Quero evolução, melhor, quero revolução. Quero giros céleres nesta Roda; que ela me erga novamente e quando estiver em seu ápice eu possa me lembrar humildemente de seu nadir!
Por enquanto vou fazendo as mesmas coisas: conhecendo Lispector, Hesse e Caio F., vez por outra lembro que farei concursos e estudo; continuo julgando crítico e criteriosamente cada ação de minha mãe (às vezes temo por isso e sofro imensamente por agir assim e nunca parar e continuar fazendo-a sofrer); e ainda continuo pondo em prática meu “maquiavélico plano de conquistar o mundo cativando as pessoas”. Quanto a isso sinto irresponsavelmente leviano envolver meu caríssimo [Goldmund]. Porém não consigo fazê-lo diferente e provavelmente eu o queira assim, do jeito que é: irresistível e repulsivo, próximo e distante, puro e pecaminoso. Talvez ele o queira da mesma forma. Talvez. Contudo não quero brincar com os sentimentos dele, pois me sinto brincando com os mesmo meus sentimentos. Ora, eu brincar comigo, importa algo só pra mim; já brincar com os deles (ou com ele) implica algo para nós: ele e eu. E resulta muitas vezes em muita dor de cabeça!
Veja, é o fim do ano; estamos próximos, as conversas leves, os risos frouxos e verdades despudoradas permeiam nossas confissões; em breve a harmonia será quebrada – eu não o esperarei, pois nunca o espero – o machucarei e terei raiva dele e ele não estará comigo em meu zênite; eu lamentarei e te direi “– aquele menino é muito confuso, estamos afastados; tenho saudades, mas até revê-lo” – e te contarei de outros rapazes... e será assim. É o padrão. Aconteceu de 2007 para 2008, de 2008 para 2009 e já começou a acontecer. Tenho medo de ficar preso nisso e acorrentá-lo também.
Certa vez me perguntaste se eu o namoraria. Lembro ter respondido “não” e após um suspiro “não da maneira que ele está agora”, pois não me apetece o papel “vejam, eu sou gay, mas não me chamem de veado”, ou algo que tenta transparecer como “sexualidade bem resolvida”, mas que no fundo sabemos com é. Não. Não namoraria esta persona. Ela não me atrai. O que me agarra são os poucos momentos de congruência, quando ele não está armado ou em defesa; quando conversamos apenas amenidades, longe do turbilhão das celebridades ou da indiscutível reputação da [Kamala]; quando seu olhar foge de vergonha de minhas perguntas ou insinuações (ou seriam provocações?). Sim, eu o desejo com lascívia e ternura... Mas eu quero o novo e no fim, quero apenas a mim mesmo. No mais, algo precisa acontecer, algo precisa ser feito para que a revolução desta vez não me propicie a mesma Fortuna. Repito, algo precisa ser feito e provavelmente eu o farei. Tenho de fazer. Tenho de me tornar agente em minha vida!
[pausa]
15:31 – após o almoço frugal e o topor da sesta.
Teu convite expresso na carta se tornou já parte de meus pensamentos: “Vamos viver, menino, vamos viver. Há vida. Vamos viver.” – Mas estou cansado, e isto não é novidade [...]
Segunda-feira, 07 de dezembro (24 dias para 2010)
A novidade é que uma tia morreu e isso foi a melhor coisa que aconteceu com ela. Há ano ela perdera a expressão humana para usar as feições medievalistas retratadas em iluminuras do século XIV. Hoje a morte tem para mim o seu aspecto: face encovada, cabelos grisalhos, olhos espantados e a magreza judia do holocausto... é a Grande-Mãe trazendo seus filhos para seu ventre!
Sabá também morreu. E pude assistir a vida esvanecer daquele corpo ordinário que os gatos e as pessoas têm em comum. Estive realmente triste, pois perdi minha companheira de chuva e sua espera paciente à porta do banheiro enquanto eu banhava – ainda mantenho o hábito de não pisar no tapete para secar os passos; mas sei que em breve perderei este cuidado. Passou. Foram sete anos, mas passou.
Não queria terminar esta carta com visões mortíferas ou alusões à finitude ou a temporalidade do agora. Mas assim é a existência, um vertiginoso voltear de chegadas e partidas.
A proximidade de nossos abraços,
Joaquim Neto
4 comentários:
Cara, eu tô encantado com tuas palavras! Você escreve muito bem!
Meus parabéns!!
Me sinto íntima lendo a sua carta...
Um beijo,
Roberta.
P.S. A Roda da Fortuna nunca está parada. Seja o que for o seu presente, está em constante mutação, porque nada é permanente!
Parabéns, adorei o blog.
E sua foto me lembra caio fernando abreu.
bjs
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