quarta-feira, 28 de abril de 2010

O velho e a menina

Com o olhar fustigado, a vista da senhora de cabelo desgrenhado é penumbrada pelo sol. Ela tenta livrar-se da claridade abrasada com uma das mãos, enquanto com a outra guia o neto, livrando-o dos empurrões nas calçadas movimentadas das ruas do comércio.

Ela agarra com mais força a mão do infante para atravessarem, cuidando para não serem atropelados pelas motos e bicicletas apressadas de aflições. Enquanto atravessam o menino olha hipnotizado a bomboniere sortida de todas as cores pueris. A mulher sabia o desejo do garoto, de derreter os rosas, e verdes, e amarelos e anis sobre sua linguinha. Ela mesma, quando criança, sempre quebrava o tijolo de rapadura antes da lida na fonte, para derreter as lascas açucaradas sobre a língua, que, na época, articulava as cantigas das lavadeiras entoadas em pobres redondilhas.

Mas aqueles doces não seriam para ele. Neste mês o doce que entrará em casa será o granulado alvo de adoçar o café. O básico. A cesta básica. Nada mais. A bolsa-família nem dá o mês direito, é preciso completá-la sempre; recorrer-se-á ao parco galinheiro, mais uma vez.

O garoto não conjeturava qualquer coisa. Apenas olhava os doces, não os via consigo. Talvez os desejasse, mas não tinha importância, estava acostumado a não querer o óbvio. Acompanhava a avó porque gostava do movimento do centro e gosta de sua companhia.

A avó entra em algumas mercearias, conversa um pouquinho com os comerciantes, acerta os fiados pendentes e abre novas contas para o mês que vem. É tudo muito mecânico e prático. Não há tempo. É quase meio-dia pelas inferências da senhora, e nem o feijão está no fogo ainda. O menino prefere ficar nas calçadas espiando a pressa dos transeuntes.

Na última bodega, ele é encarregado com umas poucas sacolas meio cheias de compras e enquanto a conversa da avó espicha-se um pouco mais, ele entrete-se nos sacos de feijões e rações. O garoto gostava de meter o braço nos grãos para ver se alcançava o fundo. Muitas vezes, os comerciantes irritavam-se dizendo que aquilo era seboseira. Mas aquele bodegueiro não se irritaria, era seu amigo; dava-lhe balas-de-troco quando lá ia a mando de sua avó. Além do mais, ele era um dos poucos que ao fim da feira não jogavam de volta às sacas os grãos esparramados pela calçada. E isso o garoto acha digno e por tal lhe respeita. E principalmente por isso que o menino tratou logo de espantar o vira-lata que queria uma prova da ração cor-de-rosa de cheiro desagradável.

A avó riu-se do susto com o “marcha-cachorro!” do menino e o bodegueiro agradeceu-o abrindo o pote das balas-de-troco e ao tirar um punhado delas, a tímida voz do menino o interrompeu: “O senhor tem rapadura? A vovó gosta mais de rapadura”.

domingo, 25 de abril de 2010

Águas de março


As águas de março não fecharam o verão. Elas tardaram e fecharam o cenho dos agricultores que contavam com elas para fecharem a Semana Santa.
[...]
Todos esperávamos fechar o verão banhando-nos de chuva; mas enquanto o verão fechava-se por si próprio, apenas olhávamos os guarda-chuvas comprados para os festejos, fechados.
[...]
O verão fechou-se para o outono; e fechou-se com muitas lágrimas e palavras pontiagudas de ciúmes, medos, chantagens, orgulhos... palavras para fechar qualquer relação... como eu queria ver esta questão resolvida, esta gestalt fechada!
[...]
O fato que é que março fechou-se. O verão fechou-se. E o mês se abril para as águas.


POST SCRIPTUM
O mês de março foi um mês anômalo para mim: estava carregado de ideias que condensaram apenas esse chuvisco de frases soltas. Mas ando quente e úmido, prestes a trovejar vez por outra e esperando a inspiração da outonal brisa de maio. Ela trará consigo o murmurar de uma antiga prece celta:
“Que a estrada se abra à sua frente.
Que o vento sopre levemente às suas costas.
Que o sol brilhe morno e suave em sua face.
Que a chuva caia de mansinho em seus campos.
E até que nos encontremos de novo,
Que os Deuses lhe guardem nas palmas de suas mãos...”