sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Apenas

Hoje, quando vejo os anos marcados em faces alheias, noto minhas futuras rugas de expressões cansadas. Elas estão à espreita, farejando a preguiça de minhas ações e a flacidez de meus desejos.

Queria ter alguém que notasse isso antes de mim. Pois é muito solitário conhecer-se; recompensador, mas ainda assim solitário. Penso que o ruim de se ser só, não é a ausência de afagos ou declarações – isso acontece também em companhia – o ruim de se ser só é olhar para o detalhe da sala, ou do outro, ou de uma maneira de pensar e não haver quem compreenda o porque daquele, justo daquele detalhe, ter-se tornado figura tão atraente. O ruim de se ser só, antes de tudo, é a perda da maravilhosa companhia da intimidade recíproca.

Então se sobrevive sozinho, por não se estar completo. Porém não se vive mais.

Altos / Piauí
16.07.2010

Considerações de um agora póstumo

Eu retornava de Pedro II e rabisquei estas impressões para o inverno que chega ao fim logo mais:

O tempo ameno. A brisa suave. A vida mansa. Todavia, a monotonia à espreita. O que fazer? Esperar? Não há paciência suficiente. Não há disposição à espera. Não há... não há...
Um vazio ecoa oco. Por que não existe mais o ribombar dos fogos emotivos?
A vida é estranha a seu tempo. E estranha o suficiente para nos impressionar.

Pedro II / Piauí
06.06.2010

Fora uma profecia, certamente... que vagarosamente se vai cumprindo.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O velho e a menina

Com o olhar fustigado, a vista da senhora de cabelo desgrenhado é penumbrada pelo sol. Ela tenta livrar-se da claridade abrasada com uma das mãos, enquanto com a outra guia o neto, livrando-o dos empurrões nas calçadas movimentadas das ruas do comércio.

Ela agarra com mais força a mão do infante para atravessarem, cuidando para não serem atropelados pelas motos e bicicletas apressadas de aflições. Enquanto atravessam o menino olha hipnotizado a bomboniere sortida de todas as cores pueris. A mulher sabia o desejo do garoto, de derreter os rosas, e verdes, e amarelos e anis sobre sua linguinha. Ela mesma, quando criança, sempre quebrava o tijolo de rapadura antes da lida na fonte, para derreter as lascas açucaradas sobre a língua, que, na época, articulava as cantigas das lavadeiras entoadas em pobres redondilhas.

Mas aqueles doces não seriam para ele. Neste mês o doce que entrará em casa será o granulado alvo de adoçar o café. O básico. A cesta básica. Nada mais. A bolsa-família nem dá o mês direito, é preciso completá-la sempre; recorrer-se-á ao parco galinheiro, mais uma vez.

O garoto não conjeturava qualquer coisa. Apenas olhava os doces, não os via consigo. Talvez os desejasse, mas não tinha importância, estava acostumado a não querer o óbvio. Acompanhava a avó porque gostava do movimento do centro e gosta de sua companhia.

A avó entra em algumas mercearias, conversa um pouquinho com os comerciantes, acerta os fiados pendentes e abre novas contas para o mês que vem. É tudo muito mecânico e prático. Não há tempo. É quase meio-dia pelas inferências da senhora, e nem o feijão está no fogo ainda. O menino prefere ficar nas calçadas espiando a pressa dos transeuntes.

Na última bodega, ele é encarregado com umas poucas sacolas meio cheias de compras e enquanto a conversa da avó espicha-se um pouco mais, ele entrete-se nos sacos de feijões e rações. O garoto gostava de meter o braço nos grãos para ver se alcançava o fundo. Muitas vezes, os comerciantes irritavam-se dizendo que aquilo era seboseira. Mas aquele bodegueiro não se irritaria, era seu amigo; dava-lhe balas-de-troco quando lá ia a mando de sua avó. Além do mais, ele era um dos poucos que ao fim da feira não jogavam de volta às sacas os grãos esparramados pela calçada. E isso o garoto acha digno e por tal lhe respeita. E principalmente por isso que o menino tratou logo de espantar o vira-lata que queria uma prova da ração cor-de-rosa de cheiro desagradável.

A avó riu-se do susto com o “marcha-cachorro!” do menino e o bodegueiro agradeceu-o abrindo o pote das balas-de-troco e ao tirar um punhado delas, a tímida voz do menino o interrompeu: “O senhor tem rapadura? A vovó gosta mais de rapadura”.

domingo, 25 de abril de 2010

Águas de março


As águas de março não fecharam o verão. Elas tardaram e fecharam o cenho dos agricultores que contavam com elas para fecharem a Semana Santa.
[...]
Todos esperávamos fechar o verão banhando-nos de chuva; mas enquanto o verão fechava-se por si próprio, apenas olhávamos os guarda-chuvas comprados para os festejos, fechados.
[...]
O verão fechou-se para o outono; e fechou-se com muitas lágrimas e palavras pontiagudas de ciúmes, medos, chantagens, orgulhos... palavras para fechar qualquer relação... como eu queria ver esta questão resolvida, esta gestalt fechada!
[...]
O fato que é que março fechou-se. O verão fechou-se. E o mês se abril para as águas.


POST SCRIPTUM
O mês de março foi um mês anômalo para mim: estava carregado de ideias que condensaram apenas esse chuvisco de frases soltas. Mas ando quente e úmido, prestes a trovejar vez por outra e esperando a inspiração da outonal brisa de maio. Ela trará consigo o murmurar de uma antiga prece celta:
“Que a estrada se abra à sua frente.
Que o vento sopre levemente às suas costas.
Que o sol brilhe morno e suave em sua face.
Que a chuva caia de mansinho em seus campos.
E até que nos encontremos de novo,
Que os Deuses lhe guardem nas palmas de suas mãos...”

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fortune rota volvitur

Eu ansiava pela revolução da Roda apesar dela já estar girando; minhas percepções estavam estagnadas no ponto em que eu permanecia. Foi preciso o ano recomeçar com o amanhecer de um dia qualquer para que eu percebesse que o movimento já se iniciara, melhor, que ele sempre existira, uniformemente variado.

Mas eu ansiava mesmo pelo ápice; mais uma vez pelo meu zênite. E lembro-me de ter escrito o desejo de jamais esquecer, humildemente ter em mente, meu nadir. Então me volto neste texto às minhas apreciações da época infausta, da época monótona do fim de 2009, quando aspirava às ausências e tinha algumas certezas.

Naquela época escrevi à Maria – minha amada Maria – e lhe dava conta do que se passava em minha vida. Gostaria de reproduzir fielmente, mas envolvo pessoas outras e eticamente seria impossível fazê-lo sem expor uma relação desgastada e retroalimentada de muitas más-interpretações. No fundo, não me importo muito em expor a relação – certamente outrem identificar-se-ão com ela – expor as pessoas seria indigno e certamente por elas interpretado à traição.

– Interpretado. Interpretado... – meus caros, por mais que queiramos, em vida real não interpretamos nada ou ninguém, somente somos. O verbo interpretar não se coaduna com o viver. Vive-se apenas sendo. Assim, sou Joaquim Neto, no ápice da Roda da Fortuna, relembrando-me e esperando o outro momento. Quero compartilhar-me através da carta à Maria. As personagens são secundárias e por isso as revesti de tons pastéis, palavras ocres e substantivos de Hesse. Sem mais delongas:


São 9:30 em um céu de 06:30 h

Altos, 2 de dezembro de 2009

Um homem limpa umas bananeiras, enquanto uma cabritinha salta sobre as pedras do quintal da vovó. Hoje está silêncio e o dia começou cedo; para mim, desde às 5:00 h sou pura consciência. Então resolvi escrever-te lamentando não estar em tua companhia e queixando-me por sentir tua falta. Queria o desapego búdico de deixar estar, abandonar até aquilo que me é caro. Ao menos queria ter tua força de vontade para “rester” abrigada das interferências externas em teus estudos. Não consigo. Simplesmente é monótono demais me perceber pensando em atitudes familiares: qual livro começarei a ler? qual área ainda não tenho conhecimento? quais relações preciso aprofundar?... enfim, não passam de pensamentos rotineiros. Acho que perdi o gosto de procurar o desconhecido. Creio que apenas o aguardo, mas ele não vem; e se vem, aparece-me disfarçado em roupas de ontem, com cheiros familiares e aparência bem cuidada...

A Roda da Fortuna girou lentamente durante a Primavera e minha vida, não, minha animação definhava enquanto o Centro de Altos desabrochava em róseas inflorescências; agora com as primeiras chuvas de verão sei que em mim tudo estará bom e belo. É mais uma certeza que esperança. É assim que acontece. É sempre assim que acontece. Assim como as bananeiras devem ser limpas antes das chuvas ou os cabritos exercitarem-se em solo acidentado. Logo mais estarei feliz; agora não. É um estado de não-felicidade e não-infelicidade que talvez os cabritos e as bananeiras conheçam, mas que é diferente do apenas-deixar-o-rio-correr almejado pelos taoístas, pois há desejo. Quero evolução, melhor, quero revolução. Quero giros céleres nesta Roda; que ela me erga novamente e quando estiver em seu ápice eu possa me lembrar humildemente de seu nadir!

Por enquanto vou fazendo as mesmas coisas: conhecendo Lispector, Hesse e Caio F., vez por outra lembro que farei concursos e estudo; continuo julgando crítico e criteriosamente cada ação de minha mãe (às vezes temo por isso e sofro imensamente por agir assim e nunca parar e continuar fazendo-a sofrer); e ainda continuo pondo em prática meu “maquiavélico plano de conquistar o mundo cativando as pessoas”. Quanto a isso sinto irresponsavelmente leviano envolver meu caríssimo [Goldmund]. Porém não consigo fazê-lo diferente e provavelmente eu o queira assim, do jeito que é: irresistível e repulsivo, próximo e distante, puro e pecaminoso. Talvez ele o queira da mesma forma. Talvez. Contudo não quero brincar com os sentimentos dele, pois me sinto brincando com os mesmo meus sentimentos. Ora, eu brincar comigo, importa algo só pra mim; já brincar com os deles (ou com ele) implica algo para nós: ele e eu. E resulta muitas vezes em muita dor de cabeça!

Veja, é o fim do ano; estamos próximos, as conversas leves, os risos frouxos e verdades despudoradas permeiam nossas confissões; em breve a harmonia será quebrada – eu não o esperarei, pois nunca o espero – o machucarei e terei raiva dele e ele não estará comigo em meu zênite; eu lamentarei e te direi “– aquele menino é muito confuso, estamos afastados; tenho saudades, mas até revê-lo” – e te contarei de outros rapazes... e será assim. É o padrão. Aconteceu de 2007 para 2008, de 2008 para 2009 e já começou a acontecer. Tenho medo de ficar preso nisso e acorrentá-lo também.

Certa vez me perguntaste se eu o namoraria. Lembro ter respondido “não” e após um suspiro “não da maneira que ele está agora”, pois não me apetece o papel “vejam, eu sou gay, mas não me chamem de veado”, ou algo que tenta transparecer como “sexualidade bem resolvida”, mas que no fundo sabemos com é. Não. Não namoraria esta persona. Ela não me atrai. O que me agarra são os poucos momentos de congruência, quando ele não está armado ou em defesa; quando conversamos apenas amenidades, longe do turbilhão das celebridades ou da indiscutível reputação da [Kamala]; quando seu olhar foge de vergonha de minhas perguntas ou insinuações (ou seriam provocações?). Sim, eu o desejo com lascívia e ternura... Mas eu quero o novo e no fim, quero apenas a mim mesmo. No mais, algo precisa acontecer, algo precisa ser feito para que a revolução desta vez não me propicie a mesma Fortuna. Repito, algo precisa ser feito e provavelmente eu o farei. Tenho de fazer. Tenho de me tornar agente em minha vida!

[pausa]

15:31 – após o almoço frugal e o topor da sesta.

Teu convite expresso na carta se tornou já parte de meus pensamentos: “Vamos viver, menino, vamos viver. Há vida. Vamos viver.” – Mas estou cansado, e isto não é novidade [...]

Segunda-feira, 07 de dezembro (24 dias para 2010)

A novidade é que uma tia morreu e isso foi a melhor coisa que aconteceu com ela. Há ano ela perdera a expressão humana para usar as feições medievalistas retratadas em iluminuras do século XIV. Hoje a morte tem para mim o seu aspecto: face encovada, cabelos grisalhos, olhos espantados e a magreza judia do holocausto... é a Grande-Mãe trazendo seus filhos para seu ventre!

Sabá também morreu. E pude assistir a vida esvanecer daquele corpo ordinário que os gatos e as pessoas têm em comum. Estive realmente triste, pois perdi minha companheira de chuva e sua espera paciente à porta do banheiro enquanto eu banhava – ainda mantenho o hábito de não pisar no tapete para secar os passos; mas sei que em breve perderei este cuidado. Passou. Foram sete anos, mas passou.

Não queria terminar esta carta com visões mortíferas ou alusões à finitude ou a temporalidade do agora. Mas assim é a existência, um vertiginoso voltear de chegadas e partidas.

A proximidade de nossos abraços,

Joaquim Neto

domingo, 10 de janeiro de 2010

Em fidalga presença

Ouvi dizer que tens presença para mim. Então, ma dá! Quero prová-la, quero interferi-la, quero presentificá-la em mim. Só a quero porque te quero. Só a quero porque me queres.

Não fujas! Não corras teu olhar pelas paredes nuas. Nada há para ver; além de mim. Olha-me. Vê-te em minhas pupilas. Estou aqui; no presente; em presença para ti.

É uma pena! Mas não me queres assim. O que te assusta na Congruência? O encontro com o real? A concretude de ser o que se é?

Há resposta. E sabes que sei de teu medo em proferi-la.

Mas não estou aqui para te ver contra a parede. Estou aqui porque ouvi dizer que tens presença para mim.