sábado, 21 de março de 2009

Ao Héllio Linhares, que esteve tão “perto do coração selvagem”

“E de repente as coisas haviam endurecido, uma orquestra rebentara em sons tortos e silenciara imediatamente, havia alguma surpresa triunfante e trágica no ar. Eu descobri que no fundo não havia em mim surpresa; que tudo caminhava lentamente para aquilo e agora se precipitara no seu verdadeiro plano. [...] Ninguém precisava mais mentir, uma vez que eu já sabia tudo! Também agora me precipitarei em outro estado. Por quê? Por quê? Vou embora daqui, vou para casa, de um instante para o outro o rasgão no vestido, ouvir o grito lancinante da orquestra e subitamente o silêncio, todos os músicos caídos mortos sobre o estrado, no grande salão zangado e vazio. Olhar de frente para o rasgão, mas sempre tive medo de rebentar de sofrimento, como o grito da orquestra. Ninguém sabe até que ponto posso chegar quase em triunfo como se fosse uma criação: uma sensação de poder extra-humano conseguida em certo grau de sofrimento. Porém um minuto mais e a gente não sabe se é de poder ou de absoluta impotência, assim como querer com o corpo e o cérebro movimentar um dedo e simplesmente não consegui-lo. Não é simplesmente não consegui-lo: mas toda as coisas rindo e chorando ao mesmo tempo. Não, seguramente não inventei esta situação, e é isso o que mais me surpreende. Porque minha vontade de experiência não chegaria a provocar esse ferro frio encostado na carne morna, finalmente morna da ternura de ontem. Oh, não se fazer de mártir: você sabe que não continuaria no mesmo estado por muito tempo: de novo abriria e fecharia círculos de vida, jogando-os de lado, murchos... [...] Sobretudo não houve transformação essencial, tudo isso já existia, houve apenas o rasgão do vestido indicando as coisas. E realmente, realmente, realmente, dor de cabeça, cansaço, realmente tudo caminhava para isso.”
Clarice Lispector

domingo, 8 de março de 2009

Em plena tormenta, a bonança

“Você vai entender se eu disser que tenho medo e que preciso ir devagar?” Essa foi a tentativa de resposta após a noite de resoluções em claro. Ele realmente não esperara aquela proposta.
Sua consciência ainda agastada ora pelo cansaço, ora pela decepção, demorara mais que o costume para processar todas as informações das últimas quinze horas e conseguiu apenas uma breve procrastinação para a realidade emergente, quedando-se por mais quinze horas e o sono reparador indicou-lhe o caminho.

Todavia estava ele ainda empacado em tentativas. E tentará não se abater com as revelações recentes de acontecimentos pretéritos: isto é assunto de 2008 e permanecerá enterrado com o ano passado. As consequências permanecem, transformar-se-ão fatalmente com o passar dos dias, mas ainda permanecem...

Tentará mais uma vez. Temendo, mas tentará com todas as forças de seu coraçãozinho resoluto em seguir em frente.

...

“Ei! Olha pra mim” pede ele docemente, é atendido e se segue a interrogação.
“Porque teu olhar é bonito e ultimamente necessito ver coisas belas” ele responde objetivamente e nota o olhar singelo sob uma testa curiosa.
“É bonito sim. É um olhar que de repente se mostra...” ele esclarece e o olhar pisca e foge num relance.
“Não... não é tristeza que teu olhar mostra. É complicado explicar. Mas é quase um convite...”
Sorriem.

Ele começa então a imaginar que é possível a bonança vir em plena tempestade, pois é nesta tormenta de traições que se planta amor e chegam notícias da colheita de curas.
Ele traz um sorriso ainda cauteloso, mas acima de tudo agradecido pela vida.

domingo, 1 de março de 2009

Alegoria de vidro em pó

Ultimamente algumas conversas esclarecedoras têm me feito ter algumas idéias. A alegoria que se segue é resultado de uma delas, ocorrida durante certa madrugada em meu quarto, há semana antes do carnaval.

Era apenas uma lâmpada qualquer que estourou após uma carga de maior intensidade. Desesperado, ainda tentei juntar os pedaços com cola... quanta ingenuidade!... Percebi isso logo após ser avidamente cortado.
Talvez por acalentar futuras esperanças... sabe que eu já me apegara àquela lampadazinha qualquer!... os cacos que restaram em guardei em uma caixa escura, assim eu teria a desculpa de não me lembrar o quanto aquela lâmpada me ofuscara durante certo tempo.

Mas mexeram em minha caixa. Sacudiram-na e a atiraram ao chão.

Porque não conseguiria esquecê-la mesmo!... Apanhei-a e a coloquei sobre a cômoda, ao lado do pote de cola; e só por curiosidade abri a tampa para ver como estavam os cacos: menores e em maior quantidade.
Como havia ainda certo espaço dentro da caixa, guardei o pote de cola que eu usei na tentativa de unir o vidro logo após o estouro.

Quando tudo estava calmo e nova luz já brilhava em meu quarto, surgiu a necessidade de uma comemoração. O que fazer? Qual o motivo para uma festa? Sei lá... que tal a lâmpada nova do Joaquim?!!
Então já tinha o lugar e o motivo, os víveres seriam as sobras da festa passada; faltavam as pessoas. Poucas foram chamadas, mas outros apareceram.

No início da tertúlia saí para buscar gelo e distraí-me com os ímãs da geladeira que fixavam meus lembretes:

“Cobre a armação com a seda vermelho-sangue.O vento tá chegando e as outras pipas já estão no céu.”
“Guarda a porra daquela caixa, porque se ela se espatifar de novo no chão, os cacos vão virar pó.”


Foi quando notei que a música tinha parado e os convivas e os outros estavam calados... a caixa! (era um pensamento instantâneo e automático).

Ao abrir a porta, percebi a escuridão do quarto e na penumbra mesmo avistei o pó de vidro espalhado pelo chão, sendo lentamente incorporado à cola que escorria do pote.

(pausa dramática para os pensamentos de um piscar de olhos)
“Eu sabia que deveria ter guardado numa gaveta aquela tralha toda!”
“Por que diabos que esta luz tá apagada? Será que a lâmpada estourou de novo?”
“Cola + pó de vidro + pipa = cerol”


(resoluções sobre pensamentos de um piscar de olhos)
“Posso bem usar esta merda toda que se formou: é só colocar um pouquinho mais de cola e passar na linha, assim nenhuma linha vai tirar minha pipa vermelho-sangue do céu! Além do mais, posso cortar qualquer uma que se aproximar demais”

Então o que eu fiz: acendi a luz; mirei os outros e os convidei a chegarem mais cedo em suas casas. Com ajuda dos poucos que convidei, juntei cuidadosamente a bagunça com um pano úmido e coloquei na mesma caixa. Sai acompanhado por eles, que nem se surpreenderam quando joguei tudo no lixo. Apenas os poucos que convidei sabiam que não valeria à pena cortar os dedos para manter afastadas as outras pipas, assim como não valerá à pena guardar os cacos das futuras lâmpadas quaisquer.