domingo, 16 de novembro de 2008

O Cabra Francisco

Francisco conseguiu finalmente vender na feira dos bichos sua última cabra, aquela enjeitada que o acompanhava por toda parte e lambia-lhe as costas das mãos após a caminhada matutina da roça para a casa.

A língua áspera roçava-lhe as veias de suas magras mãos e penteava-lhe os pêlos que agora cresciam e tornavam-se abundantes. Ele ria-se e no fim fechava o punho para que ela lhe desse uma marrada. E ia lavar-se antes de comer.

Mais uma vez executado o ritual de preparação para o almoço, ele apanhava o prato e ia sentar-se no tamborete que ficava ao pé do enorme jatobazeiro para comer. Enquanto ela tentava a todo custo enfiar o focinho no baião e dois que a mãe de Francisco preparara na madrugada, antes de ir ao trabalhar em casa de família na cidade.

Francisco lembrou-se destes episódios quando recebia metade do valor que pedira ao comprador. Mas sabia que era a venda ou não ter o que comer durante a semana que começava; e por isto mandou os pensamentos calarem-se ouvindo os roncos de seu estômago. Além do mais, poderia recuperá-la. Era só rezar para que ninguém queira comprar aquela cabrinha magra até a semana que vem.

Era seu engano necessário, pois nunca poderia comprá-la de volta.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Quando o coração se divide entre a esperança e a razão

Eles se olharam e já sabiam o que aconteceria. Não eram cúmplices, mas já eram companheiros; de silêncio, de angústia, de suspiros... de suspiros sim, pois a atmosfera que os circundava tornava-se dia após dia impenetrantemente densa.

Olhos falaciosos avizinhavam-se do veículo esperando o desfecho da ação que fora suspensa quando a primeira lágrima rolou por sobre um dos ombros. Mas eles já não estavam na mesma realidade desses olhos curiosos: foram transportados para uma dimensão gelada, onde os segundos passam lentos e o sangue foge das mãos.

As visões embotavam-se enquanto frases curtas eram pronunciadas esporadicamente. Depois foi a vez dos monossílabos e quando as vozes acalentadoras não puderam mais ser ouvidas, assentimentos encerraram a conversa.

Quando mais uma vez o silêncio tomou seu posto entre eles, os lábios tocaram um das mãos (um soluço escapuliu por entre os dedos da outra mão, mas foi abafado pela batida da porta).

Um último olhar.
A atmosfera ainda mais densa.
E um grito agarrado pela garganta não conseguiu sair.

–Pronto! Era o que se precisava ser feito... racionalizava-se mais uma vez na tentativa de calar a esperança.

Ela não se calou. Ruminou, rememorou o episódio, recontou os passos e despediu a interveniência da razão; mais uma vez laureou os sentimentos e seu séquito de emoções acompanhou-a: instalava-se uma desconstrução imediata.