domingo, 12 de julho de 2015

Sentinela

ao Pai Quincas

"Ouço seu ressonar no quarto de dormir, cheio de pausas e ruídos. Um sono cansativo; mais laborioso que a vigília, justamente por não ser sono realmente. Há cansaço em seu alento e debilidade em seu pulsar. Há, acima de tudo, teimosia em seu viver. Porque sua hora não chegou. Chegará em algum tempo? Certamente."


Eu escrevera este parágrafo em uma das últimas vigílias que fiz ao vovô (02.07.2015). Quatro dias depois sua hora chegava, em pleno dia; no meio do dia sua luta para se manter vivo expirou. Porém é à noite que sua falta se mostrar mais renitente.

À noite eu ouvia as preocupações dele me chamando: “este é o último ou ainda tem algum remédio pra tomar?”; “faça uma prece pelo seu avô”; “venha meu filho, venha trocar a fralda, ela tá suja”; “deixe a luz acesa”; “leve a fralda pra jogar no tambor de lixo”; “veja se elas já tão lá fora... já tá na hora do café... abra a porta”; “e meu remédio do jejum?”... Todos estes imperativos formavam uma canção cansativa, temerosa, mas acima de tudo, cheia de esperança.

...

Quando o vovô trocava de roupa, pedia-nos para enchermos seu bolso de algodão para ele limpar seus olhos, que fazia à noite deitado em sua rede entre conversas inaudíveis e gestos para os céus; enquanto eu, deitado na cama, observava calado os movimentos que ele fazia. Desconfio que ele secava seu medo de partir com aqueles chumacinhos tirados tão delicadamente do bolso esquerdo de seu pijama. Talvez este fosse o único medo que ele deixasse transparecer. Não apenas partir, mas partir sozinho, ficar sozinho talvez o assustasse mais que qualquer coisa. Já não havia irmãos vivos para conversar, seus amigos e compadres com os anos rareavam; ele recebia as notícias de seus falecimentos um a um com pesar e a voz embargada.

Nos últimos anos o vovô evitava sair de casa e nos queria na presença dele. A proximidade da família lhe trazia segurança, mesmo quando ele se sentava sozinho em frente à janela e via a vida passar rapidamente em sua calçada. Ele sempre me parava pra que eu pudesse pedir sua bênção e contar como estavam os estudos e/ou trabalho. Passar em frente daquela janela sem as perguntas do vovô faz sua ausência mais vívida. Escrever sobre isso faz sua ausência ecoar como sua voz à noite nos últimos meses, chamando-nos para saber as horas, recomendando providências para o lixo, perguntando-nos pelo café, por seus filhos e pela vovó.

...

Sete dias ainda é pouco tempo para se discernir tudo que se passa cá dentro desde sua partida. As emoções à flor da pele, a espera pelo seu descanso, os parentes e amigos velando nossos derradeiros cuidados, as correntes de orações e o som de sua respiração exausta ainda estão impregnados em meus sentidos. No entanto, isso tudo vai passar, fatalmente mudará com o transcorrer dos dias, dará lugar a lembranças menos pesarosas e poderei contar as histórias do Pai Quinca no mesmo tom que ele repetia as peripécias de sua mocidade, com entusiasmo, deferência e uma pitada de humor.


Resta-me agradecer a todos que se fizeram presentes na vida dele, em especial nestes últimos meses, e puderam acompanhar muito de seus dias e um pouco de suas noites, certamente ele esteve bem satisfeito pela atenção disponibilizada. Obrigado.

Nenhum comentário: